Santa Rita de Extrema | Esperança que nasce num vale de ossos secos

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Esperança que nasce num vale de ossos secos

No mês de setembro tradicionalmente somos convidados a olhar com carinho para a Sagrada Escritura. Conhecido como mês da Bíblia, cada ano nos é sugerida a leitura de um livro do Antigo ou do Novo Testamento. Para esse ano de 2024 nos foi proposto o livro do Profeta Ezequiel. E para nos ajudar nesta leitura e reflexão partilho com vocês parte de um artigo de Luiz Alexandre Solano Rossi e Érica Daiane Mauri. Texto publicado pela revista Vida Pastoral. Vale a pena a leitura: “O capítulo 37 do livro do profeta Ezequiel é fascinante! Por meio de visões, Deus comunica ao profeta suas palavras e ações, e a imagem que se desvela aos olhos de Ezequiel é inquietante. À primeira vista, a visão pode parecer assustadora. O texto bíblico nos leva até um vale. Contudo, a paisagem não é agradável aos olhos; não há sinal do verde das plantas, do canto dos pássaros nem do colorido das flores.

Esperança que nasce num vale de ossos secos

O ambiente parece reduzido à ausência de vida. Impera o silêncio e a morte! Desespero e desolação se apresentam de forma absoluta, enquanto qualquer possibilidade de esperança é desfeita. Esses são os contornos do vale – do vale da sombra da morte. O que, porém, se vê no vale? “A mão de Javé pousou sobre mim e o espírito de Javé me levou e me deixou num vale cheio de ossos” (v. 1).

O profeta é convidado a andar por entre os ossos a fim de confirmar que não há o menor indício de vida. Eram muitos os ossos e estavam extremamente secos. O que representavam? A visão é aplicada exclusivamente aos exilados na Babilônia. O povo de Israel é comparado a cadáveres em sepulcros, situação que não permitiria vislumbrar nenhuma possibilidade de esperança (v. 11b). Todavia, há diferentes modos de ver a vida: na perspectiva dos olhos e do projeto de Deus ou na perspectiva dos olhares demasiadamente humanos que se afastam de Deus. Contra a desconfiança dos deportados, que pensam já estarem destinados ao túmulo, Deus lhes assegura que fará o milagre da restauração: pelo poder do seu espírito, a vida será maior do que a morte e, vivos, retornarão à terra natal. Então, todos reconhecerão que é tudo obra de Deus e de mais ninguém (v. 13-14).

Todo o capítulo 37 possibilita refletir que a esperança está germinando em meio ao sofrimento. Se a esperança parecia escapar por entre os dedos e o desânimo não proporcionava saída, o Espírito de Deus soprava,  restaurando todos aqueles que o exílio fatalmente havia atingido. Deve-se salientar que a ação é do próprio Javé. Ele é o protagonista da salvação. Um Deus que está plenamente vivo e ativo para restaurar a vida e a esperança de seu povo. Por duas vezes, lemos a importante expressão “povo meu” (v. 12.13). Se o povo, anteriormente, quando da destruição de Jerusalém, pensava que havia sido abandonado por Deus, a expressão demonstra a relação de afeto e de pertença do povo em relação a Deus. Daí advêm as múltiplas promessas (v. 12): “vou abrir”, “tirar vocês”, “levá-los”, “colocar meu espírito”, “colocarei em sua própria terra”, a fim de que o povo saiba que ele é Javé.

A ação de Javé possui objetivos históricos e visíveis: o retorno do exílio! “O espírito penetrou neles, e reviveram, colocando-se de pé. Era um exército imenso” (v. 10). A palavra profética e o espírito estão juntos nesse projeto de libertar e reconstruir o povo de Deus. Dois momentos sobressaem: a palavra profética responde pela organização/recomposição do povo, e ao espírito cabe a função de revitalizar sua espiritualidade. Dessa forma, a promessa de salvação pode se tornar realidade. O espírito é a instância que cria a mediação pela via da profecia. O profeta entende a ressurreição desses ossos como nova criação. O grande ruído que se ouve dá início a nova possibilidade de vida. A experiência da ressurreição (assim descrita nos v. 11-14) é trabalhada por meio do verbo “fazer subir”, expressão emprestada de outros contextos bíblicos para evidenciar a saída do Egito (cf. 1Sm 12,6; Dt 26,8; Os 12,14). Afinal, o povo dos tempos exílicos não passava de um vale cheio de ossos.

Diante de um ambiente de extermínio, morte e desfalecimento, é proposto um projeto de descontinuidade. Ou seja, a nova criação não será simplesmente um melhoramento progressivo do que já existe; ao contrário, a velha criação, bem como o coração de pedra (36,26), dará lugar a realidades completamente novas: uma nova criação e um coração de carne. Não se trata, portanto, de um projeto de continuidade, mas sim de ruptura!

A imaginação profética de Ezequiel cria uma imagem impensável: os ossos escutam as mesmas palavras proféticas que os vivos não escutavam e obedecem a elas. Mencionados oito vezes, eles simbolizam os mortos, o passado marcado pela tragédia, e se referem àquilo que nega a vida, aquilo que se corrompe dia após dia para terminar em pó; os ossos não são nada, pois com base neles não é possível construir comunidade. De sua parte, o Espírito de Deus – que também aparece outras tantas vezes – é a força vital que aponta para o futuro, potencializa a recriação da realidade e da vida e, com isso, põe ordem no caos. Contudo, a maestria do relato faz que as duas realidades não se oponham, mas se cruzem quando, sob o comando do profeta, os ossos que estão mortos ganham vida a partir do momento em que o espírito neles se encarna.

Ezequiel, num movimento de vaivém, é um mestre no uso de imagens: o mesmo espírito que o havia colocado em pé, no relato de sua vocação, agora é responsável por colocar em pé uma multidão que estava reduzida a ossos. Espírito que se encontra tanto em relação com o indivíduo quanto em relação com a comunidade. Espírito que revitaliza tanto um quanto o outro. Nessa dinâmica é possível encontrar a esperança em meio aos dramas da vida, ou seja, em meio aos vales de ossos ressequidos do cotidiano.”

 

Padre Mauro Ricardo de Freitas
Texto retirado de: vidaPastoral
na data de 24 de agosto de 2024

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