História: o divino através das ciências humanas
A história é um aspecto da existência subjetiva e social que surgiu simultaneamente ao aparecimento do próprio gênero humano; desde os primeiros hominídeos, há vestígios de registros feitos nas paredes das cavernas, as pinturas rupestres, que acenam para a necessidade que o ser humano tem de preservar na memória eventos relevantes e realidades significativas para ele. Sistematizada como saber na Grécia Antiga, especialmente pelos trabalhos do filósofo Heródoto de Halicarnasso (século V a.C.), que foi o primeiro estudioso a utilizar esta palavra para designar uma ciência, a história é um vocábulo que, originariamente, designa investigação, observação, análise do que ocorre em torno daquele que é capaz de olhar (ἱστορία, em grego).
História, portanto, é um conhecimento obtido a partir de uma pesquisa sobre aqueles eventos produzidos pelo ser humano ou pelos quais ele é afetado e que o envolvem como sujeito, que são capazes de causar uma dinâmica interior e coletiva chamada de tempo.
Enquanto ciência, a história se alimenta de fontes, isto é, de recursos materiais (como objetos, textos, construções etc) ou imateriais (como costumes, relatos orais, celebrações etc) que, potencialmente, são capazes de oferecer pistas sobre as formas de existência e sobrevivência de um grupo humano numa determinada época e local. Estas fontes históricas são angariadas pelas ciências que colaboram para o estudo do ser humano no tempo, dentre as quais destacam-se três que se desenvolveram a partir de meados do século XVIII. A geologia, cujo nome significa estudo da terra (γη, geo, terra + λογος, logos, estudo), é um saber que possui o intuito de examinar o solo para entender o seu processo de desenvolvimento e composição. Ao escarafunchar um pedaço de terra específico, o geólogo pode encontrar fósseis de animais e plantas que se tornam objetos de interesse da paleontologia, que quer dizer estudo do ser antigo (παλαιό, palaio, antigo + όν, on, ser + λόγος, logos, estudo), na investigação sobre as formas de vida, especialmente inumanas, em períodos historicamente remotos. Além dos fósseis, o trabalho geológico traz à luz fontes materiais que foram escondidas pela ação dos fenômenos naturais ao longo dos séculos, que são analisadas pela arqueologia, isto é, pela ciência que estuda o passado do ser humano (αρχαίος, arkhaios, antigo + λόγος, logos, estudo).
Essas três ciências auxiliares ao estudo de história colaboram vivamente para o conhecimento da Palavra de Deus, na medida em que ajudam, através de seus métodos próprios de investigação, a desvendar os eventos históricos que são narrados teologicamente na Bíblia pelo povo de Israel e pelos cristãos. A descoberta de centenas de evidências materiais ao longo dos dois últimos milênios, especialmente na região geográfica em que ocorreram os fatos contados pelos 73 livros bíblicos, ajudam no entendimento do ambiente natural, histórico, cultural, econômico, político e religioso que serviu de cenário para a revelação de Deus e para a formação dos textos por Ele inspirados. Dentre todos os achados arqueológicos que cooperam para o avanço dos estudos bíblicos, a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, entre 1947 e 1956, é notoriamente insuperável. Mais de 900 pergaminhos escritos majoritariamente em hebraico, e alguns em aramaico e grego, entre os quais estavam os textos do Primeiro Testamento que são considerados, atualmente, os exemplares que formam a Bíblia Hebraica mais antiga do mundo, datados entre o século II a.C. e I d.C., deram novo vigor ao empenho científico dos exegetas.
Em 1947, dois jovens beduínos, ou seja, integrantes de comunidades nômades que viviam em regiões desérticas, tanto na África quanto no Oriente Médio, pastoreando rebanhos de cabras e ovelhas, encontraram, em cavernas que ficam no deserto da Judeia, próximo ao Mar Morto, jarros de cerâmica lacrados que preservavam pergaminhos de couro e papiro de pelos menos 2000 anos. Na Judeia, especificamente no deserto de Qumran onde ficam as cavernas em que os manuscritos foram descobertos, situada na Cisjordânia, desenvolveu-se, no século II a.C., uma comunidade de ascetas, isto é, de pessoas dedicadas a uma radicalização da vida espiritual: os essênios. Considerados como uma seita judaica criada a partir da inconformidade de um grupo de judeus com a hipocrisia da religião oficial que era ensinada e praticada pelos fariseus no Templo, os essênios afastaram-se de Jerusalém em busca de um estilo de vida austero e apocalíptico, estudando e vivendo a Torá independentemente das escolas rabínicas e da liturgia solene. Embora tenham desaparecido na segunda metade do século I d.C., este grupo dissidente e questionador do Judaísmo oficial, do qual hipoteticamente fez parte João, o Batista que é primo de Jesus, teria sido responsável por guardar os pergaminhos que foram encontrados no século XX.
Os primeiros pergaminhos achados pelos dois beduínos, que eram cerca de 7 e estavam escritos em hebraico, não puderam ser lidos por eles, já que falavam árabe. A ignorância em relação ao conteúdo dos manuscritos, graças às limitações linguísticas, fez com que fossem vendidos pelos pastores, passando a circular entre comerciantes e leiloeiros do Oriente Médio sem que pudessem compreender o valor inestimável daquelas fontes históricas, justamente devido à ausência de uma análise científica do material. Em 1948, um ano após a descoberta dos primeiros pergaminhos, no contexto de reestruturação dos países após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Israel declarou sua independência e foi atacado por países vizinhos de cultura muçulmana que não apoiavam sua emancipação devido a motivações históricas, geográficas, culturais, políticas e econômicas. A região de Qumran foi dominada pela Jordânia que assumiu a liderança dos trabalhos arqueológicos e empreendeu a descoberta de grande parte dos mais de 900 textos; armazenados em condições de umidade desfavoráveis e manuseados de forma inapropriada, sendo agrupados, por exemplo, com o uso de fitas adesivas, os pergaminhos permaneceram sob o poder da Jordânia, que destruiu cerca de 5% deles, até 1967, quando ocorreu a Guerra dos Seis Dias.
Durante esse conflito travado entre Israel e países árabes, como o Egito, a Síria e a Jordânia, o deserto da Judeia foi reconquistado por Israel e, junto com ele, os manuscritos. A partir de então, os textos passaram a ser devidamente conservados e estudados. O posterior esclarecimento a respeito da novidade ímpar carregada pelos manuscritos ocasionou um interesse sem precedentes pela exploração arqueológica nas mais de 600 cavernas de Qumran, o que possibilitou a descoberta de outros pergaminhos e ainda continua a oferecer novidades no campo historiográfico com o achamento de construções, objetos, textos e fósseis que colaboram para o estudo da Sagrada Escritura. Devidamente guardados no Santuário do Livro, dentro do Museu de Israel, em Jerusalém, os Manuscritos do Mar Morto são exemplos importantes de como as fontes históricas são fundamentais para o aprofundamento da mensagem salvífica da qual a Bíblia é portadora, e de como os saberes desenvolvidos pelo ser humano ajudam a desvendar a forma pela qual Deus se revelou ao ser humano para a salvação do mundo.
Prof. Diego Augusto Gonçalves Ferreira
Mestre em Educação (UNICAMP),
especialista em Sagrada Escritura, graduado em Filosofia, História e Pedagogia,
bacharelando em Teologia pela Universidade São Francisco (USF)