Kairós e Cronos: o divino no tempo humano
A revelação de Deus registrada nas páginas da Sagrada Escritura ocorre na história humana, da qual Ele é senhor e guia, pois a governa com poder (cf. Sl 66,7), tudo predestinando desde sempre e por todos os séculos para o louvor da sua gloriosa graça (cf. Ef 1.5-6). Não se trata de uma predeterminação da história universal ou subjetiva por parte de Deus, já que, se isso ocorresse, a liberdade humana e, portanto, a própria obra da criação estariam manipuladas e seriam um simulacro. Em sua sabedoria e providência amorosa, respeitando a consciência e o livre arbítrio do ser humano, que constrói a história com seu pensamento e ação, Deus destinou tudo, desde a eternidade, para “levar à plenitude os tempos, reunindo todas as coisas sob uma cabeça: Cristo” (Ef 1,10). Esse movimento de avanço da história na direção de Deus como princípio e fim (cf. Ap 22,13) é o “tempo da graça” (καιρός, em grego) porque é nele que ocorre a economia salvífica, narrada pela Bíblia, claramente entrelaçada com o “tempo cronológico” (Χρόνος, em grego), muito embora o extrapole.
Embora a noção de tempo na cultura moderna não apresente variações semânticas, sendo empregada em diferentes contextos com a mesma conotação matemática de medida de duração, os gregos antigos possuíam um entendimento multifacetado do tempo, colaborando para a compreensão da Bíblia como narrativa sobre a revelação divina no tempo humano. Kairós e Cronos, cujos nomes são atribuídos a duas divindades da mitologia grega, designam duas percepções de tempo distintas e complementares: o primeiro, refere-se ao tempo qualitativo, ou seja, aquele que escapa à métrica numérica porque é o momento em que algo extraordinário acontece, subvertendo a lógica histórica; o segundo, diz respeito ao tempo quantitativo, isto é, aquele que é objeto de medição aritmética e ritmo ordinário da vida e da história. Dessa forma, pode-se dizer que a Sagrada Escritura conta a experiência kairótica que o ser humano realiza de Deus, narrando os momentos oportunos (cf. Hb 4,16) de derramamento da graça divina para a salvação do mundo, a partir de pressupostos cronológicos.
O extraordinário de Deus se realiza no ordinário da história, de sorte que sua ação salvífica, todavia esteja completamente enraizada no cronos, é capaz de produzir o kairós, transformando a ordem quantitativa do tempo natural em experiência teológica sobrenatural porque, “para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pd 3,8) ou “mil anos diante de teus olhos são como o dia de ontem que passou” (Sl 90,4). Livre dos domínios físicos do tempo que se impõem aos seres criados, Deus, que é acrônico por natureza, rompe os privilégios da atemporalidade e, ao revelar-se especialmente em Jesus Cristo, aceita submeter-se aos limites da história humana para falar ao ser humano de um jeito que pudesse ser compreendido e acolhido. Dessa forma, a narrativa do kairós bíblico ocorre segundo a dinâmica do cronos greco-judaico, isto é, dos costumes e acontecimentos ligados ao tempo na cultura grega, mas, sobremaneira, na judaica.
Conhecer, portanto, a história do Primeiro e do Segundo Testamentos é imprescindível para situar a experiência kairótica do povo de Deus no microcontexto da história dos povos bíblicos e no macrocontexto da história universal, reconhecendo que o divino se revela no tempo humano. Em sentido amplo, interessa à compreensão histórica de determinadas narrativas bíblicas o entendimento que os judeus possuem de tempo e as inferências culturais dessa percepção para o desenvolvimento das festas que emolduram tantas passagens escriturísticas. Para o judaísmo, o tempo é uma dimensão sagrada da existência do indivíduo e do povo, pois está intimamente ligada com a intervenção de Deus na história e, assim, com a salvação; o calendário lunissolar judaico, por exemplo, segue uma rígida observância da economia agro-pastoril vivida na Palestina, fazendo coincidir as celebrações religiosas (dimensão kairótica do tempo) com a natureza (dimensão cronológica), através do ciclo das estações e das plantações.
As festas previstas no calendário judaico mencionadas pelos hagiógrafos, tanto nas narrativas sobre o povo de Israel quanto naquelas que falam sobre Jesus, são evidências de que o kairós ocorre no cronos, ou seja, de que a ação salvífica de Deus acontece no tempo humano. O sentido de renascimento que há nos campos desabrochando em flor durante a primavera, que é a primeira estação do ano judaico (de meados de março até meados de junho), serve de ambiente para cinco festas: 1) a Páscoa (Pêssach, cf. Êx 12,1-14; Lv 23,5; Jo 2,13), que celebra a libertação do êxodo; 2) os Pães Ázimos (Hag ha-matzot, cf. Êx 12,15-20; 13,3-10; Lv 23,6-8; Mc 14,1,12), que prolonga o júbilo pascal e recorda a fuga de Israel do Egito às pressas, sem que houvesse tempo para a fermentação dos pães; 3) a Festa das Primícias (Yom ha-bikkurim, cf. Lv 23,9-14; Nm 28,26), na qual Israel oferece a primeira colheita do ano a Deus; 4) a Páscoa do Segundo Mês (Pêssach Sheni, cf. Nm 9,6-12), que relembra a segunda chance dada por Deus a Israel depois da primeira páscoa; e 5) Pentecostes ou Festa das Semanas (Shavuót, cf. Êx 23,16; Lv 23,15-21; At 2,1), na qual se comemora a revelação da Lei de Deus para o povo de Israel.
Embora não haja nenhuma comemoração no verão (de meados de junho até meados de setembro), quando o calor atinge as temperaturas máximas, a paisagem outonal que toma conta do Oriente Médio da metade de setembro até meados de dezembro, marcada pela abundância de chuva e pela fertilização do solo, é palco para a celebração de outras cinco festas judaicas: 1) Trombetas (Rosh hashaná, cf. Lv 23,23-25; Nm 29,1-6), em que se celebra o ano novo judaico e se realiza a colheita do que foi produzido no verão; 2) Expiação (Yom Kipur, cf. (Lv 16; 23,26-32; Hb 9,7), que é a festa do perdão, na qual os judeus realizam um jejum de 25 horas para purificar o espírito e alcançar o perdão de Deus; 3) Tabernáculos, Tendas ou Cabanas (Sucót, cf. Lv 23,33-36.39-43; Jo 7,2,37), que recorda a peregrinação do povo de Israel pelo deserto em direção à Terra Prometida, durante 40 anos; 4) Santa Convocação ou Assembleia Solene (Simchat Torah, cf. Lv 23,36; Nm 29,35-38), na qual Israel celebra a entrega dos dez mandamentos a Moisés; e 5) a Festa da Dedicação ou Hanucá (Hanukkah, cf. 2 Mc 10,39-45; Jo 10,22), que festeja o fim da dominação babilônica sobre Israel e a reconstrução do 2º Templo de Jerusalém.
No inverno, quando a vitalidade do sol fica escondida pela chuva que alaga as planícies e pela neve que cobre os montes, entre dezembro e março, os judeus comemoram Purim (Purîm, cf. Est 9,18-32), uma festa que preserva a memória da reversão de um mandado persa de genocídio judaico através de Mardoqueu e Ester. Como se pode notar, cada estação do ano judaico, esticada pela horizontalidade do tempo cronológico, subsidia a celebração de alguma memória da fé de Israel, espichando-se na verticalidade do tempo kairótico. A sequência dos dias e dos meses, dos séculos e dos milênios, matematicamente organizados e metricamente sucessivos, servem de moldura para o acolhimento e o entendimento da revelação; logo, como não poderia deixar de ser, a encarnação de Jesus Cristo na plenitude dos tempos tornou-se não só o marco histórico de contagem do tempo para o ocidente, mas, sobretudo, a certeza de que, rebaixando-se ao cronos, Deus quis provocar no mundo e no ser humano uma nova dimensão do tempo, o kairós: “eis o tempo favorável! Eis o dia da salvação! (2Cor 6,1-2).
Prof. Diego Augusto Gonçalves Ferreira
Mestre em Educação (UNICAMP),
especialista em Sagrada Escritura, graduado em Filosofia, História e Pedagogia,
bacharelando em Teologia pela Universidade São Francisco (USF).