Santa Rita de Extrema | Segundo Testamento: o divino na história dos cristãos

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Segundo Testamento: o divino na história dos cristãos

Enquanto os primeiros 46 livros da Bíblia contam a história da primeira aliança que Deus fez com a humanidade através do povo de Israel, os 27 livros do Segundo Testamento narram os eventos da última e definitiva aliança de Deus com o mundo através de seu Filho Jesus e da comunidade cristã. Para compreender o fio histórico que se estende da encarnação do Verbo de Deus (cf. Jo 1) até o final do I século d.C., quando, a partir da morte do último apóstolo, João, o evangelista, a Igreja considera encerrada a revelação bíblica, é preciso retomar as informações que caracterizam os 400 anos que precederam o nascimento de Jesus. Embora o protestantismo, fundamentado na visão reducionista do cânon bíblico que adotou do Judaísmo tardio, defenda este período como sendo intertestamentário ou

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interbíblico, entendendo que foi um tempo em que ocorreu o total silenciamento do profetismo e a ausência de atividade redacional, os católicos, ao aceitarem livros deuterocanônicos como Macabeus, por exemplo, produzidos no século I a.C., acreditam que há uma ininterrupção da revelação bíblica desde a era patriarcal judaica (2000 a.C.) até o ocaso da era apostólica cristã (final do século I d.C.). Em Israel, os quatro séculos que antecederam a plenitude dos tempos, em que o Filho de Deus veio habitar no meio de seu povo para salvá-lo (cf. Gl 4,4-7), testemunharam: 1) o controle do império persa (539-333 a.C.); 2) o domínio do rei macedônio Alexandre Magno, conhecido como período grego (333-323 a.C.); 3) a alternância do poder na região, após a morte de Alexandre, entre os Ptolomeus do Egito (323-204 a.C.) e os Sírios (204-267 a.C.); 4) a rebelião militar dos macabeus contra a opressão ptolomaico-siríaca, que estabeleceu um governo judaico independente durante a era macabeia (167-63 a.C.); 5) e, por fim, a conquista da Palestina por Roma graças à atuação do general Pompeo, em 63 a.C., intensificando-se com a nomeação de Herodes, o grande, como rei da Judeia, em 37 a.C., e servindo de moldura para a redação de todos os livros do Segundo Testamento: desde a primeira carta de São Paulo aos Tessalonicenses, a obra inaugural da tradição cristã escriturística, redigida em 51 d.C., até a compilação dos escritos de São João – Evangelho, Cartas e Apocalipse – nas últimas décadas do século I d.C.. Tornando-se o maior de todos os impérios do mundo antigo em 27 a.C., Roma conquistou vastos territórios no entorno do Mar Mediterrâneo, especialmente a partir das campanhas militares expansionistas que foram realizadas a partir do século IV a.C., chegando até o Oriente Médio.

A faixa de terra entre o mar e o rio Jordão, chamada pelos romanos de Palestina, que deriva do termo Philistia, graças aos filisteus que ocuparam a região de Canaã no século XII a.C., foi dividida em regiões administrativas – Galileia, Samaria e Judeia – e submetida à governança de representantes nomeados pelo imperador de Roma, tais como: Herodes, o grande, que foi rei da Judeia (37-4 a.C.); Herodes Antipas, que reinou sobre a Galileia (4a.C.-39 d.C.); e Pôncio Pilatos, que governou toda a província romana da Judeia (26-36 d.C.). Antes, porém, de falar sobre a história do Segundo Testamento é fundamental saber que há um erro de datação, propagado desde a contagem realizada pelo monge Dionísio, o Exíguo, no final do século V d.C.: de acordo com seu estudo, a partir dos precários recursos historiográficos da época, Jesus teria nascido 753 anos após a fundação de Roma e o ano 754, então, corresponderia ao ano 1 do calendário cristão; no entanto, se Herodes morreu em 4 a.C., conforme atestam as fontes históricas modernas, e ele reinava na Judeia quando o Filho de Deus se fez homem, então a encarnação do Verbo Eterno deu-se entre 6 e 4 a.C.. Quando Jesus nasceu em Belém, na província romana da Judeia (cf. Lc 2,4), César Otaviano Augusto reinava sobre Roma (27 a.C.-14 d.C.): fundador do império, Augusto foi o seu primeiro governante, responsável pela introdução do culto de adoração ao imperador e pelo início da pax romana, um período de aproximadamente dois séculos em que houve estabilidade política e prosperidade econômica nos territórios controlados por Roma.

Enquanto Jesus exerceu seu ministério público na Galileia e quando foi morto na Judeia, Tibério Cláudio Nero César ocupava o trono imperial (14-37 d.C.), sendo sucedido por: Tibério Cláudio César Augusto (41-54 d.C.), que ordenou a instalação de sua estátua no templo de Jerusalém, falecendo antes que isso ocorresse; Nero Cláudio César Augusto Germânico (54-68 d.C.), que perseguiu violentamente e martirizou os primeiros cristãos; Tito Flávio Vespasiano (69-79 d.C.), em cujo governo ocorreu a contenção da revolta judaica contra Roma (66-73 d.C.) e a destruição da cidade e do segundo Templo de Jerusalém (70 d.C); e Tito Flávio Domiciano (81-96 d.C.), cuja política persecutória ao cristianismo serviu de cenário para a redação de livros  como o Apocalipse. Dentro deste quadro histórico amplo, para uma melhor compreensão dos eventos bíblicos, é possível dividir a história do Segundo Testamento em três períodos: 1) o movimento de Jesus de Nazaré (1-30 d.C.); 2) o expansionismo missionário de Paulo (30-70 d.C.); e 3) a perseguição à Igreja cristã (70-100 d.C.).

Se num primeiro momento (1-30 d.C.), a mensagem de Jesus, transmitida de forma simples para os judeus convertidos que pertenciam às camadas sociais mais pobres de Israel, ficou quase que restrita aos limites geográficos da Palestina, para não dizer da própria Galileia, com a conversão de Paulo, três anos após a ressurreição de Cristo, o evangelho se lançou do oriente para o ocidente, peregrinando pela Ásia Menor, Grécia e Itália. Graças ao elã missionário que tomou conta do cristianismo primitivo (30-70 d.C.), devido ao entusiasmo que se apoderou dos recém-convertidos, mas, sobretudo, por causa da perseguição do império romano que obrigou os cristãos a fugirem para regiões distantes de Jerusalém, que até então era o centro irradiador da fé apostólica, a mensagem de Jesus se encontrou com a cultura grega, atingindo pagãos de diferentes classes sociais e localidades, especialmente ao longo da costa do Mar Mediterrâneo.

Este expansionismo da pregação evangélica, que ganhou notoriedade com a atuação dos apóstolos, especialmente de Paulo, que empreendeu pelo menos três grandes viagens missionárias por diferentes regiões do Mediterrâneo (cf. At 13–19), foi provisoriamente contido pelo acirramento das perseguições romanas ao cristianismo, logo após a destruição do Templo de Jerusalém e da diáspora judaica, em 70 d.C.. Nesse contexto, judaísmo e cristianismo se distanciaram, configurando-se como religiões distintas, e o contato da mensagem de Jesus com as culturas gentílicas fez irromper nas comunidades primitivas desvios doutrinários que exigiram a imediata redação dos conteúdos revelados que até então eram transmitidos oralmente; inclusive porque as testemunhas oculares que viveram com Jesus, isto é, os apóstolos, estavam morrendo: com exceção de João, que faleceu por complicações da idade avançada, todos os demais apóstolos foram martirizados entre a década de 40 d.C., quando Tiago, o Maior, foi o primeiro a ser morto, decapitado em Jerusalém a mando de Herodes Agripa I (cf. At 12,2), até o final do século I d.C., conforme atesta a tradição da Igreja.

Inaugurando a transmissão escrita da revelação no Segundo Testamento, em 51 d.C., através da redação de cartas endereçadas às comunidades que fundara em diferentes partes do Mediterrâneo, Paulo foi imitado pelos hagiógrafos neotestamentários que se dedicaram a testemunhar graficamente os fatos vividos por Jesus e, a partir Dele, pelos seus seguidores. Evangelhos, Atos, Cartas e Apocalipse, enxertados na história cristã que foi intensamente construída por aqueles que eram diretamente afetados pela cultura judaica e pelo domínio político-econômico de Roma – tanto Jesus quanto seus discípulos –, são registros de uma experiência genuína da fé que se enraíza na vida: ao falar de Deus, através e na pessoa de Cristo, e dos cristãos, por causa Dele, os 27 livros do Segundo Testamento contam a estupenda notícia de um Ser divino supra-histórico que, para salvar a humanidade e por amor incomensurável, tornou-se homem, submetendo-se voluntariamente à história finita para elevar os que são seus à eternidade: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo. […] Por isso desci a fim de libertá-lo […], e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8).

 

Prof. Diego Augusto Gonçalves Ferreira

 

Mestre em Educação (UNICAMP),

especialista em Sagrada Escritura, graduado em Filosofia, História e Pedagogia,

bacharelando em Teologia pela Universidade São Francisco (USF)

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